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quarta-feira, 26 de maio de 2010

A garota que eu perdi

Chovia muito forte naquele dia e ela se sentiu ainda mais presa dentro do pequeno apartamento. “Merda”, quantas vezes ainda xingaria para aliviar toda a pressão que sentia no peito? Não muitas. Por que tanta angústia e medo? Porque, em resumo, tinha sido uma vida miserável.

Pegou o telefone e pela primeira vez naquele ano pensou em ligar para a sua mãe, mas concluiu que não seria uma boa idéia. Talvez algum outro número de qualquer outra pessoa... Nada lhe veio à cabeça. Onde estavam todos? Será que algum dia teria havido alguém? Ela precisava falar, desabafar... mas com quem?

Com ninguém. A garota estava ficando louca.

Trêmula, levou o pequeno embrulho à boca. Foi preciso pressionar com força os dentes caninos para rasgar todas aquelas camadas de plástico. Redobrou a atenção e entornou sobre a mesa boa parte de todo o dinheiro que havia lhe restado na vida. Estava decidida a não desperdiçar um único centavo do seu último salário.

Fechou os olhos, respirou fundo e alongou mais uma vez os músculos do pescoço. Abriu os olhos e contemplou extasiada o estado em que se encontrava o seu apartamento: toda aquela desordem – as garrafas de vodka barata pela metade e espalhadas por todos os cantos da sala, as roupas sujas em cima do sofá, o mau cheiro que vinha das sacolas de lixo acumuladas perto da porta de entrada – tudo contribuía com preciosismo na construção do cenário de sua degradação.

Voltou os olhos para a mesa e admirou os lineares caminhos que se abriam na madeira envelhecida. Tinha um inacreditável senso de proporção, com olhos que pareciam feitos para aquela missão e coordenação motora capaz de garantir precisão milimétrica em um trabalho primoroso, digno de uma especialista.

Ela era viciada em cocaína há anos, mas naquele instante sentia-se, como nunca, à beira do mais alto precipício. Era preciso estar, ali, naquele lugar e naquela situação. Era onde queria estar!

Há exatos quatro dias leu pela primeira vez a carta que sentenciava a sua morte em até quinze dias, mas havia decidido que duas semanas era tempo demais. Tinha a certeza de que alguém iria lhe matar e podia imaginar as formas mais cruéis para isso. Sabia que estava sendo observada, às vezes seguida. Na dúvida e no medo, resolveu que driblaria seu algoz e morreria de forma prazerosa, por conta própria: cheirando.

Para isso, duas grandes e grossas carreiras do mais puro pó. Uma para cada lado do nariz. Primeiro uma contração nos músculos faciais. Uma dor de cabeça profunda e um clarão também.
É como se ela recebesse uma descarga elétrica que, em frações de segundo, percorre todo o seu corpo da ponta dos pés à vasta cabeleira. Sua visão cega e por alguns segundos é como se ela entrasse em êxtase.

Recordações sombrias invadiram a sua mente e, em um lampejo, ela se lembrou da carta, a maldita carta aparentemente benevolente que trazia em letras de forma a mensagem: “Cuide-se, algo de muito terrível está prestes a acontecer”. Depois foi a vez do estranho telefonema, em que uma voz aflita, abafada por panos, aconselhava cautela, atenção e prudência. Aquela voz não estava mentindo e ela podia sentir isso! Nos últimos dias havia desconfiado que olhares estranhos a perseguiam no meio da multidão. Já tinha suspeitos, vários deles, todos associados ao tráfico. Ou quem sabe algum psicopata, maníaco? Algum ex namorado, talvez... Não estranharia. Todos os dias ela via casos como esse na televisão.

Seria esse o seu fim?

Não, ela não queria que sua mãe sofresse ainda mais ao vê-la exposta em rede nacional. Ela não merecia isso. Ela a mãe, ela a filha... as duas não mereciam nada daquilo.

Mais uma carreira e voltou a ler a carta. Por que ninguém assinou? Por que aquela pessoa que parecia se preocupar tanto com a vida dela tinha medo de se identificar? Poderiam ser amigas, cúmplices... Poderia ser a sua salvação. Mas ninguém apareceu e ela, em pânico, trancou-se no apartamento e cuidou de fechar todas as cortinas. Quem quer que fosse que estivesse seguindo os seus passos não chegaria até ela. Estava protegida.

Foi de repente que lhe ocorreu o óbvio: estava fraca, cansada, desnutrida, mas ainda continuava viva e seu corpo parecia resistir bravamente a todo pó que inspirava. E se não morresse com aquelas últimas gramas que estavam enfileiradas ali na sua frente? O pânico percorreu todo o seu corpo só de imaginar ter de voltar à rua para comprar mais gramas da droga.

Enrolou mais uma vez a nota de mil cruzeiros, tomou fôlego e, debruçando-se sobre a velha mesa de madeira, cheirou desesperadamente tudo o que havia sobrado no plástico sem parar nem ao menos para recuperar o fôlego. Não deu outra. Ela conseguiu o que queria, obteve sucesso em sua última missão, morreu.

Essa foi a garota que eu perdi para a cocaína. Li sobre o caso em importantes jornais da cidade. Não era para ter sido assim.